domingo, 27 de fevereiro de 2011

A MORFOLOGIA DA PAISAGEM

Extraído de Geomorfologia e o estudo da paisagem. Valter Casseti

O conceito científico de paisagem “abrange uma realidade que reflete as profundas relações, freqüentemente não visíveis, entre seus elementos” (Tricart, 1978), diferindo da noção de paisagem no senso comum, que permanece puramente descritiva e vaga, referindo-se a conteúdo emotivo, estético, intrinsecamente subjetivo ao próprio fato. O conceito proposto por Deffontaine (1973) reforça essa abrangência, ultrapassando o suposto limite da aparência, assim definindo: “a paisagem é uma porção do espaço perceptível a um observador onde se inscreve uma combinação de fatos visíveis e de ações das quais, num dado momento, só percebemos o resultado global”. Para este autor, o estudo da paisagem, fisionômica e qualitativa, é o ponto de partida para a análise dos fatos numa perspectiva sistêmica, assimilando-a a uma “unidade territorial”. Troll (1950) sintetiza a paisagem como uma combinação dinâmica dos elementos físicos e humanos, conferindo ao território uma fisionomia própria, com habitual repetição de determinados traços.
Enquanto na língua inglesa o termo paisagem ( Landscape) não tem significado científico particular, em alemão, ao contrário, Landschaft é um termo erudito utilizado principalmente pelos geógrafos (Tricart, 1978).
O conceito de paisagem ( Landschaft ) surge na segunda metade do Século XIX com os geógrafos físicos alemães, na mesma época em que W.M .Davis publicava os principais elementos de sua teoria. A partir do século XX o termo passa a ser utilizado de forma corriqueira entre os geógrafos alemães para designar aspectos concretos da realidade geográfica.
Dentre os precursores dos estudos integrados da paisagem destacam-se Passarge (1912, 1922), que utilizou pela primeira vez o conceito de “fisiologia da paisagem”; Tüxen (1931, 1932), que se apropriou de uma abordagem geossistêmica no estudo de paisagem, até então não incorporada a essa noção; Büdell (1948, 1963), que através das relações climatogenéticas consolidou os estudos de geoecologia e ordenação ambiental do espaço; Kalesnik (1958), que propôs metodologia para o estudo integrado da Landschaft- esfera (integridade da Landschaft- esfera, processos circulares da matéria, transformações rítmicas, zonalidade e continuidade da evolução), além de outros.
A discussão entre paisagem e ecologia estimulada por Tricart (1979) resgata o trabalho de Deffontaine (1973) que se manifesta numa abordagem sistêmica. Para o autor, paisagem e ecossistema, tratam de “naturezas” diferentes1 : “paisagem é originalmente um ser lógico espacial, concreto; apenas tardiamente ela adquiriu a dimensão lógica de um sistema”. Ao contrário, o ecossistema é, desde seu nascimento, um componente lógico, caracterizado por uma estrutura de sistema, que por não ter dimensão e não ser espacializado, não é concretamente materializável.
A “ecologia da paisagem” surge com Neef (1967) na Sociedade Geográfica da República Democrática Alemã, dando ênfase aos estudos biogeográficos. “O estudo prossegue segundo uma pesquisa de caráter ecológico, que é ao mesmo tempo um estudo de dinâmica das paisagens, no sentido em que visa determinar o funcionamento do ecossistema, como fazem tradicionalmente os ecologistas, mas localizando cuidadosamente sobre o transeto, portanto sobre o espaço, todos os fluxos encontrados e a localização dos estoques de elementos estudados” (Tricart, 1979). Nessa linhagem destaca-se o trabalho de G. Bertrand (1975), apoiado na teoria biorresistásica de H. Erhart (1956). Bertrand (1968, p. 249) entende que “o conceito de ‘paisagem' ficou quase estranho à geografia física moderna e não tem suscitado nenhum estudo adequado”. Alia-se às relações entre o potencial ecológico, exploração biológica e a ação humana na caracterização da paisagem global. Como referenciais básicos destacam-se os trabalhos de Erhart (1956), representados pela teoria biorresistásica e suas derivações, a exemplo do balanço denudacional de Jahn (1954), ampliado por Tricart (1957), incorporando o conceito de “balanço morfogenético” que culmina no estabelecimento dos diferentes “meios”, considerando a dinâmica da paisagem, como sistema de classificação (Tricart, 1977).
O estudo da paisagem numa abordagem biofísica foi desenvolvido por Huggett (1995), retomando alguns conceitos desenvolvidos por Mattson (1938), expresso através de interessante esquema referente à interpenetração das esferas terrestres ( Fig. 6. 1), utilizando-se de uma perspectiva sistêmica. O autor preocupa-se com a sistematização das relações processuais que culminam no conceito de “geoecologia”.


Desde os tempos em que os geógrafos conseguiram explicar a gênese da paisagem, fizeram dela um domínio especializado (Juillard, 1965). Contudo, os avanços epistemológicos fundamentados numa perspectiva crítica valorizaram o conceito de “espaço” em detrimento ao de “paisagem”, partindo do princípio de que “paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. Santos (1996, p. 83), ao evidenciar a abrangência do significado de espaço como objeto de estudo da geografia, em detrimento da noção de paisagem, enfatiza que “a paisagem é apenas a porção da configuração territorial que é possível abarcar com a visão”, sendo portanto “um sistema material e, nessa condição, relativamente imutável; o espaço é um sistema de valores, que se transforma permanentemente (...) o espaço são essas formas mais a vida que as anima”.
Avalia-se que os avanços metodológicos proporcionados pelo conceito de paisagem, registrados ao longo do tempo, possibilitaram a análise integrada dos componentes biofísicos e socioeconômicos, denominada de “estruturação da paisagem”, importante instrumental no processo da compartimentação. O resgate conceitual inserido na noção de estruturação da paisagem, surgido nos últimos anos, parte do interesse direto da Geografia Física na busca de alternativas metodológicas. Dentre os estudos referentes à estruturação da paisagem no Brasil, destacam-se os de Mattos (1959), para a região da Baixa Mogiana; de Monteiro (1962), para o Baixo São Francisco; de Abreu (1973), para o Médio Vale do Jaguari-Mirim, dentre outros, que procuram oferecer subsídios à compartimentação, baseados nas teses oferecidas pela geomorfologia ou pela climatologia.
Os avanços, embora incipientes, dos estudos de paisagem, enfrentam a pecha “mecanicista” atribuída pelos epistemologistas críticos. Bertrand (1968, p. 250), ao refutar as críticas, procura encerrar a discussão conceituando paisagem como “determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, bióticos e antrópicos que, reagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da mesma um conjunto único e indissociável, em perpétua evolução”.
A preocupação com as variáveis que integram a natureza, bem como com os resultados da apropriação desta pelo homem, tem cada vez mais merecido atenção dos estudiosos, partindo do princípio de que o ambiente deve ser entendido na sua integridade. A visão holística da natureza tem sido uma preocupação histórica, sobretudo entre os biogeógrafos.
Importante iniciativa, como a registrada no Simpósio de Landschaftssynthese , organizado por H. Richter & G. Schönfelder, em 1985, na Universität Halle-Wittenberg, República Democrática Alemã, merece destaque por contribuir para a retomada do conceito de paisagem. A Landscape Synthesis tem proporcionado novas discussões, voltadas principalmente às questões de natureza ambiental. Trabalhos como o de Lopez & Lopez (1986) sugerem o estudo da functional-morphological2 como fator de compartimentação da paisagem geográfica. Após apresentarem, de forma rápida, a histórica separação entre processo e forma, enquanto critério de demarcação da paisagem, consideram a variável “relevo” como importante subsídio para o estudo da paisagem. Para a individualização da paisagem ressaltam aspectos da estrutura e composição (energia, matéria, vida, espaço e tempo), e do funcionamento (leis físico-químicas, atividades das plantas no meio abiótico, atividades instintivas dos animais e formas de apropriação pelo homem). Destacam ainda as características intrínsecas dos elementos da paisagem como componentes da análise: natureza da rocha, clima, poder orogênico, vida das plantas, dos animais e dos homens, evidenciando os efeitos antropogênicos nas transformações da natureza, na perspectiva de tempo histórico. Também Tricart (1979) trata o relevo como um elemento importante da paisagem. Observa que na América do Sul normalmente os tipos de meio natural encontram-se associados à noção de relevo e vegetação, e em torno desses dois elementos nodais, uma série de implicações são dirigidas ao clima, aos solos e à inserção do homem no meio ambiente.
O conceito de paisagem, como fator de integração de parâmetros físicos, bióticos e socioeconômicos, tem sido utilizado em estudos de impactos ambientais em diferentes empreendimentos, com importantes resultados, o que leva necessariamente ao reconhecimento da vulnerabilidade e potencialidade da natureza, segundo os diferentes táxons. Busca-se portanto, a compreensão integrada dos componentes da análise. O conceito de “vulnerabilidade” volta-se aos fatores de natureza física e biótica, considerando a suscetibilidade dos referidos parâmetros em função do uso e ocupação, enquanto o de “potencialidade”, na perspectiva de Becker & Egler (1997), refere-se às condições de desenvolvimento humano em suas diferentes dimensões (potencial natural, potencial humano, potencial produtivo e potencial institucional).
Com base no tratamento dado por diversos autores para o problema, a partir da integração das informações produzidas, procura-se apresentar uma síntese da estruturação da paisagem, utilizando-se do conceito de Dollfus (1972), sintetizando o número de arranjo entre as variáveis naturais (físicas e bióticas) e as alterações humanas. Com o objetivo de se promover a integração prevista, subsidiada pelos compartimentos geomorfológicos, busca-se a compreensão da paisagem em sua integridade.
Como forma de se ressaltar o significado do relevo na abordagem do estudo da paisagem serão analisadas as variáveis que refletem diretamente nas relações socioeconômicas, considerando a vulnerabilidade dos componentes temáticos, físico e biótico, para em seguida integrá-los na perspectiva de Schmithüsen (1970), segundo a qual “se quisermos compreender a ação do homem, não devemos separar a sociedade do meio ambiente que o rodeia”.

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